quarta-feira, 7 de outubro de 2009

CRASH, de J.G. Ballard


É um pouco difícil escrever sobre Crash, de J.G. Ballard, portanto vou usar um recurso diferente ao começar esta resenha. Vou pedir para que você imagine um acidente automobilístico. Não a hora da batida, mas o depois, quando um bando de pessoas fica em volta das ferragens, observando os destroços, os feridos e os corpos estirados. Talvez você mesmo já tenha feito parte de um desses curiosos. Ou mesmo que não tenha chegado a tanto, deve ter ao menos diminuído a velocidade do seu carro ao passar próximo de um acidente e dado uma olhadinha.


O que leva as pessoas a isso? Qual o motivo desta curiosidade mórbida em ver um carro transformado em aço retorcido e pessoas mutiladas? Talvez a reação do observador seja um misto de excitação — por estar diante de algo chocante — com nojo e espanto: os três mesmos adjetivos empregados como reação à leitura de Crash.


Clássico da literatura underground, mas que só fui conhecer depois da adaptação ao cinema dirigida por David Cronenberg em 1996, o romance já é bizarro em suas primeiras páginas, ao descrever a estranha relação entre o narrador (que possui o mesmo nome do autor da obra, James Ballard) e sua esposa Catherine — um casal de classe social alta, sem filhos, que já experimentou todos os jogos sexuais para se excitarem e agora ficam contando um ao outro as relações extra-conjugais, a fim de ficarem em ponto de bala.


Depois de mais um encontro com a atual amante, o protagonista está dirigindo seu carro e sofre um grave acidente na auto-estrada, colidindo frontalmente com outro automóvel. O choque mata o motorista do outro carro e deixa James durante semanas em um hospital. Lá, ele passará por uma estranha transformação, pois aparentemente James já tinha problemas psicológicos antes do acidente, e aquele convívio direto com a dor em seus ferimentos, com o cheiro do ambiente hospitalar, com os curativos, enfermeiras e com as mortes ao seu redor parece ser uma complementação da transformação que se iniciou já durante a batida, quando peças do carro penetraram seu corpo.


Durante essa internação James percebe a presença constante de um sujeito misterioso, coberto de cicatrizes por todo o corpo, que já havia tirado fotos no local do seu acidente e parece entrar no hospital vestido de médico apenas para poder fotografar as pessoas acidentadas. Antes de receber alta, o protagonista descobre que o relato de seu acidente chega a excitar a esposa quando esta o visita, e a sua próxima amante será justamente a viúva do sujeito morto na colisão, que sobreviveu à batida. É neste crescendo de sexo em meio a batidas de carro que James finalmente conhecerá a figura de Vaugahn, o cara misterioso das fotografias: um ex-cientista que descobriu os prazeres dos acidentes automobilísticos, e que possui um séquito de seguidores que se excitam com colisões, com vítimas sendo retiradas das ferragens de um acidente e até com as próteses usadas por acidentados.


É doentio? Sem dúvidas, mas hoje em dia é natural ver gente que se excita com alta velocidade, com carrões turbinados e com sexo dentro de automóveis. Parece que J.G. Ballard simplesmente imaginou um futuro para essa relação entre homens e máquinas, e apimentou esse namoro, acrescentando sadomasoquismo na mistura. O resultado é esse romance que pode parecer muito indigesto para o leitor despreparado, que se assustará com as descrições detalhadas de órgãos genitais mutilados por partes de automóveis, e o fascínio que essas coisas exercem sobre as personagens.


Cronenberg fez um ótimo trabalho de adaptação ao transportar a obra ao cinema, mas tomou certas liberdades artísticas que deixaram a coisa ainda mais estranha. Por exemplo, a Catherine do filme é praticamente um réptil, sem emoções, sendo que no livro ela é muito mais humana e interessante. E no filme também foi eliminado aquele que é o ponto-chave da história: a meta de Vaughan em realizar sua maior fantasia sexual, que é a de envolver-se em um acidente com a atriz Elizabeth Taylor. Para compensar, Cronenberg criou cenas que não estão nas páginas da obra, como uma re-encenação bastante realista do acidente que vitimou James Dean para uma plateia.


Nesta panela entra, portanto, a questão de um futuro nada promissor para essa nossa geração aficionada por máquinas e por celebridades. Podemos dizer, então, que Crash é uma espécie de ficção científica psicológica, imaginando não o futuro dos desenvolvimentos tecnológicos, mas o caráter das perversões sexuais do amanhã, já que hoje a sociedade dá pistas de que isso pode realmente acontecer.


Pensem comigo: para muita gente, a masculinidade é medida pelo tamanho do carro que o cara possui. Todos os detalhes dos automóveis caros causam mais excitação em algumas pessoas do que um corpo saudável. As feiras de automóveis colocam sempre uma linda jovem com roupas sensuais ao lado dos veículos mais potentes, como se uma coisa estivesse totalmente ligada à outra. E estamos falando de um livro publicado em 1973, quando ainda era mais inocente esta fascinação pelos carros e pelas celebridades. Hoje em dia a produção automobilística é muito maior, e muito mais pessoas têm os carros a seu alcance, o que não deixa de ser assustador, depois da leitura deste livro. Salvo as diferenças entre os romances, Vaughan é um psicopata que lembra muito o Hannibal Lecter: inteligente, culto e com um gosto muito particular. Mas enquanto o terapeuta de O Silêncio dos Inocentes se deliciava ao saborear carne humana, o cientista de Crash é tarado por mulheres (ou homens, já que é bissexual) sendo penetrados pelo eixo da direção de um carro, durante um acidente. E eu não gostaria de encontrar um cara como ele pelo meu caminho.


Há um longo trecho, por exemplo, que de tão grotesco chega a ser atraente, quando o narrador descreve os atributos de determinada personagem que mais lhe causam excitação. Claro que não estamos falando de seios avantajados, ou de um belo par de pernas: o que o fascina são as próteses, as cicatrizes e o andar todo entrevado da moça, depois de sofrer repetidas colisões automobilísticas. Praticamente todas as cenas de sexo do livro acontecem dentro de carros, e elas são descritas com detalhes ultra-realistas, como a presença do muco anal e do cheiro de esperma seco que fica infestando o interior do automóvel.


Crash é uma literatura típica underground, no estilo dos livros de Chuck Palanhiuk (Clube da Luta), e não é recomendado para quem gosta de acompanhar uma história linear e fácil. Já nas primeiras páginas Ballard entrega que Vaugahn morre em um acidente com Elizabeth Taylor, sem conseguir alcançar seu maior objetivo, que era causar a morte da atriz. Mas para não te deixar desmotivado a ler a obra, aviso que o final é diferente do apresentado por Cronenberg — e apesar disso, conhecendo-o fica mais fácil compreender a intrigante conclusão daquele filme.


L.F. Riesemberg

5 comentários:

  1. Valeu, Riesemberg! Mais uma excelente crítica para abrilhantar a Biblioteca Mal-Assombrada!

    Putz, já tive esse livro em mãos, mas por algum motivo acabei não comprando. Sorte que não é difícil encontrá-lo em sebos. Da próxima vez, não vou deixar escapar, fiquei curiosíssimo para ler. Abraços!

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  2. Salve, Mário. Que bom que gostou! Bem, na verdade eu só recomendaria esse livro se você estivesse muito curioso e sem mais nenhum outro para ler. Levei um bom tempo para conseguir finalizar a leitura, apesar de não serem muitas páginas. Como eu disse, é um pouco indigesto. Abraço!

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  3. Ah, rapaz, eu gosto de leituras indigestas. Sou fã de Chuck Palaniuk, por exemplo (já leu a obra-prima dele chamada TRIPAS? É um conto MARAVILHOSO!). Abraços!

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  4. Não, dele só li Clube da Luta (e confesso que prefiro o filme). Mas ainda lerei outras coisas dele.

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  5. Retificando: li sim, o conto Guts, e é terrível (no bom sentido).

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