Páginas de Sombra - Contos Fantásticos Brasileiros (Editora Casa da Palavra) , organizado por Braulio Tavares, é uma jóia bem polida para nós, fãs das narrativas sobrenaturais. A maioria dos contos é de uma qualidade ímpar, com tramas que chegaram a fazer parte do imaginário popular, além de outras que revelam muitos conceitos antiquados (do povo ou dos autores) desse nosso país. Para não escapar à tradição, falemos um pouco sobre os contos:
Flor, Telefone, Moça, de Carlos Drummond de Andrade, já começa o livro detonando e dando uma voadora no peito do leitor (metaforicamente falando, não se preocupem)! Na história, uma menina passeia toda lépida por um cemitério, pensando na vida, quando resolve arrancar uma florzinha que crescia sobre um túmulo. Ela cheira o indefeso vegetal, joga fora e logo esquece do assunto. Mas quando volta para casa, uma ligação telefônica faz com que relembre de imediato. "Quede a flor que você roubou da minha sepultura?", diz a voz ao telefone. Pensando que é uma brincadeira, a garota desliga, mas a pessoa insiste, ligando todos os dias... Enfim, esse conto é tão impressionante que virou lenda urbana, com muita gente jurando que a história é verdadeira e aconteceu com uma "prima de uma amiga de um vizinho". Pois é, não foi só o Ambrose Bierce que criou lendas urbanas sem querer.
A Podridão Viva, de Amândio Sobral, foi escrita numa época em que o continente Africano ainda não estava muito bem desbravado; isso serve para contextualizar o conto, sobre uma expedição ao continete Africano que se depara com uma criatura aterradora, conhecida por matar elefantes para se alimentar. História muito boa, a despeito da descrição preconceituosa dos nativos (algo muito comum em histórias antigas e que, infelizmente, não é impossível de verificar nos dias de hoje. Mas o mais provável é que o autor não tenha feito por mal).
Teleco, o Coelhinho, é o típico conto delirante de Murilo Rubião, um autor bem conhecido no Brasil (ele é uma constante naquelas coleções estilo "Para Gostar de Ler"). A história começa com um sujeito olhando o oceano, quando uma voz insistente começa a pedir um cigarro; julgando tratar-se de um moleque de rua, ele se vira para afastar o pedinte, mas se depara com um... Coelho falante! E um coelho que fala coisas tão extraordinárias, que o narrador fica impressionado por achar que o bicho tem "mais idade do que aparenta" (hilário!). Enfim, só lendo pra entender.
Em A Última Eva, Berilo Neves escreve sobre uma epidemia que matou todas as mulheres do planeta. Antes, um adendo: um dos temas recorrentes do autor era "o mundo dominado pelas mulheres", o que rendeu diversos contos futuristas em seus livros "A Costela de Adão" e "Século XXI". Seus contos são essencialmente misóginos (embora com certa ironia), e isso não é diferente na história em questão, onde o sumiço das mulheres é lamentado principalmente porque elas eram "belos objetos de adorno"; mas enfim, ao encontrarem apenas uma mulher viva no Brasil, o governo resolve vendê-la para os Estados Unidos. Porém, lá acontecem tantas desgraças por causa dessa compra, que os americanos pagam ao governo brasileiro para aceitar a devolução da moçoila! Enfim, o conto em si não é lá essas coisas, mas até que diverte (desculpem por essa, meninas! Ah!).
Já falei dos primeiros contos, agora vou pular alguns para não entregar todo o jogo: A Escuridão, de André Carneiro, trás um tema clássico das narrativas fantásticas: um mundo onde todas as pessoas ficam cegas de repente (se você achava que Ensaio sobre a Cegueira era inovador em seu ponto de partida, sinto desapontá-lo, he he). Nessa situação, as pessoas que já eram cegas antes do evento se tornam guias dos novatos, e vamos aos poucos acompanhando a nova rotina de um grupo que tenta sobrever à provação. Simplesmente um primor!
O Caminho do Poço Verde, de Rubens Figueiredo, é a história mais angustiante da coletânea, narrando a caminhada de uma garota chamada Diana pelo interior. A coitada queria apenas fazer uma excursão, porém um estranho mal parece tomar conta de seu corpo. Impotentes, acompanhamos sua andança rumo ao destino final, numa trama que une desesperança com cenários tipicamente rurais. Sutilmente, o conto mostra a estranheza que os moradores das metrópoles sentem ao viajar para o campo, um mundo que lhes parece exótico e quase alienígena. Muito bom.
As Formigas, da grande Lygia Fagundes Telles, é uma história bastante conhecida, pois os professores do segundo grau obrigam os estudantes a ler trabalhos da escritora. É uma pena que esse método acabe deixando os alunos de má-vontade, impedindo que apreciem uma narrativa maravilhosa a contendo. Na trama, duas colegas que dividem um quarto de pensão se deparam com um acontecimento inexplicável: o morador anterior, estudante de medicina, deixara no recinto um caixote com ossos, tão pequenos que devem ter pertencido a um anão; então, durante a noite, formigas invadem o aposento para mover os ossos, de uma maneira inquietante... O final é de gelar os ossos (os seus, não os do anão)!
Os Olhos que Comiam Carne, de Humberto de Campos, trata de mais uma constante no gênero fantástico: alguém que passa a enxergar através dos materiais, incluindo os tecidos humanos. Porém, logo descobrimos que "visão de raio-x" é coisa só para o Super-Homem mesmo.
Por fim, a coletânea termina com a "quase" obra-prima Demônios, de Aluísio Azevedo. No conto, um rapaz está entediado em seu quarto, escrevendo, quando a luz se apaga. Mas não apenas a luz no recinto, mas aparentemente, na cidade inteira (olha o tema da cegueira mundial de novo!); apavorado, ele sai andando pelas ruas totalmente vazias, tateando pelas trevas em busca da casa de sua amada. Narrativa que beira à perfeição, não fosse um porém: o final broxante, mas típico da literatura da época. Bem, quem relevar vai gostar.
Enfim, Páginas de Sombra é diversão garantida, não apenas por trazer contos muito bons, mas também por mostrar um panorama dos conceitos (e preconceitos) de tempos idos, além de características de correntes literárias mais antigas, que muitas vezes relutamos em conhecer. Embaladas por um tema tão sedutor, fica muito mais fácil se aventurar por essas histórias maravilhosas.
Boa leitura!
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Foi graças a Páginas de Sombra que comecei a olhar com mais atenção a literatura fantástica feita no Brasil. Tendo Bráulio Tavares como organizador, não me arrependi. Tavares é um dos autores que sempre esperei que escrevesse ao menos um livro por ano. Com certeza eu o compraria sem olhar seu conteúdo.
ResponderExcluirAlém do mais ler um conto de Lygia Fagundes Telles é sempre excelente. Algo interessante nesse conto é a descrição da casa aonde as irmãs vão se hospedar, uma homenagem á Casa de Usher de Edgar Allan Poe.
Os Olhos que Comiam Carne foi escrito no melhor estilo de Além da Imaginação. Aliás, há um episódio muito parecido com o conto de Humberto de Campos.
Obrigado pelos comentários, Maurício. De fato, o Braulio Tavares é um escritor excelente, além de muito competente para organizar antologias (recentemente comprei outra antologia organizada por ele: Freud e o Estranho; mas esse livro, ainda não li). Eu não sabia desse lance do Além da Imaginação. Eu sei que existe um filme chamado "O Homem dos Olhos de Raio-X", com basicamente o mesmo tema (e um final bem apropriado e grotesco).
ResponderExcluirAbraço!
Oi,
ResponderExcluirdesculpa colocar este recado aqui, mas não encontrei outro lugar. Depois que voce ler, apaga.
Estamos promovendo um concurso para escritores amadores, em nosso site www.originalcomments.ning.com e se voce quiser participar vai ser bem legal.
Abraços, te espero lá.