
Quem já leu mais que uns 10 livros de horror e fantasia na vida já deve ter reparado uma coisa interessante: os autores desses gêneros parecem ser apaixonados por animais (principalmente gatos). A simpatia com que eles retratam os animais em seus romances e contos é evidente. Como exemplos mais significativos, consigo lembrar de H. P. Lovecraft, que tinha vários bichanos em sua casa e os tratou como heróis em À Procura de Kadath, onde o sonhador Randolph Carter é salvo por gatos em suas andanças oníricas, ou como vingadores de sua espécie no sinistro conto
Os Gatos de Ulthar; Neil Gaiman, que parece ser do tipo que recolhe todo vira-lata que encontra na rua, retratou um gato preto como anjo guardião de sua família no magnífico O Preço (do livro Fumaça e Espelhos); Stephen King parece ser menos parcial, mas os animais de suas histórias nunca são mostrados com antipatia (e quando roteirizou o filme Olhos de Gato, fez questão de interligar as histórias com um bichano que, no final, salva Drew Barrimore de um Troll!). É claro que de vez em quando, King mostra animais como monstros, mas mesmo nesses casos os bichos são tratados com o respeito que merecem. No Brasil, Giulia Moon, Helena Gomes, L.F. Riesemberg e Martha Argel são os apaixonados por animais que me vêm à cabeça de imediato (a lista é extensa, paremos por aqui). Aliás, foi conversando sobre o assunto com Giulia Moon e Martha Argel que escutei uma interessante teoria sobre esse gosto por animais pelos autores de terror e fantasia: o escritor apaixonado pelo incomum precisa ser um observador, precisa olhar para fora de si e explorar o mundo com o fascínio de uma criança curiosa; os animais são fonte infinita de exotismo, maravilhamento e um toque de medo, já que muitos deles são bem assustadores, mas sempre apaixonantes. Animais são fonte de inspiração, objetos e personagens principais de lendas e mitos da humanidade! Enfim, é natural que pessoas de forte imaginação gostem de animais, pois são observadoras curiosas do mundo e de tudo que está nele, incluindo suas criaturas.
Além dos exemplos citados, temos uma escritora que levou beeem a sério essa paixão por animais:
Patrícia Highsmith, autora do excelente O Livro das Crueldades para os que Gostam de Animais (Companhia das Letras, 1975). Mais conhecida por sua série de romances sobre o culto e homicida Tom Ripley (que já virou
filme com o Matt Damon), ela escreveu essa antologia abordando um tema recorrente: a vingança dos animais contra seus agressores. Embora o livro não seja realmente de terror, não faltam mortes violentas e algumas passagens verdadeiramente macabras.
A antologia abre com
O Finalíssimo Espetáculo da Corista, sobre uma elefanta que começa a se revoltar com sua prisão num zoológico. Narrado do ponto de vista do paquiderme, é um dos contos que humaniza o personagem animal, que lembra com saudades de sua infância na África, onde nunca mais irá voltar. Em determinado momento o bicharoco resolve dar um basta em sua situação, e quando um elefante resolve escapar, alguém sempre sai ferido. Ou pior. O final é de uma melancolia ímpar.
A Vingança de Djemal é uma das melhores (e mais aterradoras) histórias do livro, abordando os maldade do violento árabe Mahmet com seu camelo Djemal, que usa para ganhar dinheiro levando turistas para passear. Quando o animal falha em uma corrida de camelos, o proprietário espanca o bicho com a finesse de sempre, mas quando este revida, resolve vendê-lo. No entanto, um camelo, assim como os elefantes, parece não esquecer tão fácil... Embora pareça ser um conto sobre maus-tratos contra animais, o tema mais relevante é a perversidade humana, não apenas da pessoa de Mahmet, mas também de todos aqueles que o odeiam. Além da excelente ambientação, o interessante aqui é que o camelo não é antropomorfomizado, mas sim mostrado como um animal, sem pensamentos humanos nem nada do tipo. A maioria das histórias se desenvolve dessa forma. Particularmente prefiro assim, pois tira aquele ranço de "Fábula de Esopo".
Em
Lá Estava eu, Amarrado a Bubsy, a morte do dono do velho Barão (um cachorro de grande porte) o coloca em uma situação difícil. Alvo de disputa entre uma bondosa mulher e Bubsy, o (aparentemente) amante do falecido, Barão é obrigado a morar com este último, por quem sente ódio recíproco. A convivência forçada tem um destino trágico, é claro. Histórinha boa,
pero no mutcho.
A Maior Presa de Ming é sobre um gato (estava demorando para aparecer um, he he), e não vou me aprofundar muito. Se você estiver interessado, leia o conto clicando
aqui. Essa é uma das histórias menos cruéis e mais sutis, mas já dá pra ter uma idéia do estilo da autora. Ah, detalhe para a ironia do título!
A história
No Auge da Temporada das Trufas mostra com detalhes o trabalho dos porcos caçadores de trufas, usados para farejar a deliciosa iguaria que fica escondida entre as árvores. É claro, os porcos procuram as trufas porque querem comê-las, mas seus donos não permitem. Sansão, o gigantesco porco e personagem principal do conto, decide que essa condição de trabalho é injusta, e o resultado é previsível (embora o final seja de um humor negro bem eficaz). Quem já viu o tamanho que um porco pode atingir certamente vai se impressionar mais.
O Rato mais Corajoso de Veneza é, de longe, minha história favorita no livro. Vou resumir a equação da seguinte forma: grande rato de rua + bebê no berço = choro e ranger de dentes. Um primor da morbidez!
Há sete outros contos no livro, que decai um pouquinho a partir da metade, mas nada que comprometa. Ainda temos doninhas, baratas, bodes, cavalos, enfim, toda uma fauna furiosa e sedenta por vingança após tantos anos na posição de vítimas indefesas. O Livro das Crueldades é recomendado não apenas para os apaixonados por bichos, mas para qualquer um que aprecie contos recheados de ironia e (é claro) crueldade. Mas é claro que se você gostar de animais, irá se divertir muito mais! ;)
Abraços, boa leitura!