sábado, 6 de março de 2010

FUMAÇA E ESPELHOS - CONTOS E ILUSÕES, de Neil Gaiman


Permitam-me começar essa crítica como um escritor, não como um resenhista (e creio que muitos escritores concordariam comigo); quando estamos escrevendo uma história, às vezes criamos uma frase ou um trecho que se destaca, algo realmente especial, que transborda uma presença de espírito e um lirismo que, infelizmente, não conseguimos repetir em todo o texto. É como se estivéssemos plantando margaridas e, de repente, uma das sementes se revelasse uma orquídea. Quando isso acontece, cuidamos dessa preciosidade com zelo e, às vezes, até guardamos o trecho para um conto que realmente mereça, embora na maioria das vezes deixemos onde está. Se você já leu uma história que julgou medíocre, mas no meio dela havia uma frase tão marcante que você lembra até hoje, então você sabe do que estou falando. Bem, fazendo agora a comparação com o escritor Neil Gaiman, eu diria que ele não planta margaridas para encontrar uma ou outra orquídea ocasional: o filho da mãe planta APENAS orquídeas! Imensos e prolíficos campos de orquídeas. Eu poderia ficar com inveja (de fato, fico um pouco), mas na verdade fico bastante inspirado quando leio qualquer coisa de Neil Gaiman, e normalmente vou correndo para o computador escrever alguma coisa. Suponho que devo agradecer ao desgra... digo, ao talentoso Neil Gaiman, rsrs :)

Falemos um pouco sobre sua trajetória: apaixonado por literatura desde sempre, Gaiman começou trabalhando como jornalista e crítico literário para fazer conexões, e assim, conseguir publicar suas obras (antes disso, havia sido recusado por inúmeras editoras). Nessa época, tornou-se amigo de Alan Moore e decidiu escrever roteiros para H.Qs. Escreveu duas histórias (Violent Cases e Signal to Noise) que foram suficientes para a DC contratá-lo para a obra prima Orquídea Negra. A carreira de escritor começava pra valer (ou pelas próprias palavras do autor, ele "deixou de ser estilingue para virar vidraça").

A partir daí, foi só ladeira acima: além de vários trabalhos de alto nível, escreveu sua obra mais conhecida, a série Sandman, que ajudou a alçar os quadrinhos a novos patamares, conquistando o público adulto que nunca havia aberto um gibi. Além de H.Q.s, também escreveu canções, roteiros e novelas, ganhou uma renca de prêmios por tudo isso, e hoje se dedica à literatura (sua intenção inicial) e H.Q.s ocasionais. Conforme diz Stephen King, suas obras são verdadeiras "arcas do tesouro de histórias", mas hoje falaremos de seu livro que mais se aproxima do gênero terror: Fumaças e Espelhos - Contos e Ilusões (Editora Via Lettera, 2002).

Ele já começa surpreendendo de início, inserindo na introdução um conto que havia imaginado para dois amigos que iam casar (mas decidiu dar outro presente, já que a história não era das mais otimistas). E para aqueles que gostam de saber detalhes da arte da escrita, ele também conta detalhes sobre a elaboração das histórias presentes no livro, que escreveu para inúmeras antologias. Outras foram escritas apenas por diversão. Os temas são, portanto, bastante diversos, passeando entre a fantasia, a ficção científica e o terror. Em alguns casos, o tema principal não pode ser definido com exatidão, tamanha a naturalidade com que o autor aborda esses gêneros. Falemos sobre alguns dos contos então:

A obra começa com Cavalaria, a simpática história de uma velhinha que encontra o Santo Graal em um brechó e compra como enfeite para a lareira. Nada de terror aqui, mas muita fantasia e diversão, que já vai fazer o leitor novato perceber que está diante de algo especial.

Nicholas Era... é um miniconto de horror (com 100 caracteres no original). Um continho sinistro que faria muitas crianças olharem para certa figura natalina com outros olhos (olhos arregalados e tristes). Um dos melhores da obra, provando que é possível fazer coisas incríveis com pouquíssimas palavras.

O Preço é uma história de horror com um gato, provando outra teoria minha: a de que autores de horror e fantasia adoram animais. De fato, o autor é proprietário de vários gatos, e o carinho que ele sente pelo felino de seu conto é palpável. Tanto que ele se colocou como personagem da história (e sua família embarcou junto nessa). Na trama, Gaiman adota um gato preto e vira lata, que aparece na varanda de sua casa; algumas noites depois, uma estranha criatura começa a se aproximar da propriedade durante a noite, e o gato preto luta contra o monstro, como um verdadeiro guardião. A família cuida de seus ferimentos durante o dia, mas até quando o bichinho vai conseguir protegê-los? O final é uma observação muito coerente do pensamento humano.

A Ponte do Troll foi escrita para figurar num livro de contos de fadas refeitos para adultos, e foi indicada ao World Fantasy Award de 1994. Na trama, um garoto é capturado por um Troll que deseja devorá-lo, porém faz um acordo com o monstro: quando for adulto (e assim, representar uma refeição melhor), ele voltará para servir de janta ao monstro. Ao contrário do que você pode estar pensando, este delicado conto se desenvolve de uma maneira bem diferente da que estamos acostumados (aliás, isso é uma constante nas histórias de Gaiman, então se acostume).

O Palhaço é arrepiante sem derramar uma gota de sangue e sem qualquer vestígio de violência. Um primor, ainda mais para quem já teve coulrofobia* quando criança.

A Estrada Branca (baseado em lendas folclóricas inglesas) e A Rainha das Facas (sobre mágica de palco) são escritas de uma maneira pouco usual, mas agradável e inquietante. Ambas foram incluídas na antologia americana Os Melhores do Ano de Fantasia e Terror, o que já dá uma idéia da qualidade das mesmas.

A Filha das Corujas mistura fantasia e horror, contando a história de uma orfã que é guardada num convento abandonado pelas mulheres de uma cidadezinha. Certo dia, uma das mulheres deixa escapar que a garota possui uma beleza incomparável, além de não saber falar. A idéia que se passa na cabeça dos cruéis homens do lugar é bastante óbvia (se alguém a violentasse, quem saberia?), ao contrário do desfecho.

Shoggoth's Old Peculiar é sobre os mitos de H.P.Lovecraft. Acho que mais cedo ou mais tarde, todo autor de horror faz uma homenagem a Lovecraft. Neil Gaiman faz duas apenas nesse livro, sendo que a outra se chama Apenas o Fim do Mundo Novamente, onde mistura os Mitos de Cthulhu com outra criatura bastante conhecida dos fãs do horror. Dois contos simplesmente maravilhosos!

Bolinhos de Bebê é uma história curta de temática forte, que fala o que acontece quando todos os animais da Terra desaparecem. Segundo Gaiman, é a única coisa que escreveu que o perturba. Se tem esse efeito com ele, imagine conosco?

Bem, já falei um monte e não comentei nem metade das 31 assombrosas histórias dessa generosa antologia, mas acho melhor parar por aqui. Mas antes de fechar, deixem-me tecer breves comentários sobre a melhor história do livro, uma obra prima do tipo que deveríamos ler de joelhos, caso tivessemos respeito e essa posição não fosse tão desconfortável. Trata-se de Neve, Vidro, Maçãs, que subverte uma conhecida história infantil numa releitura que deixará os fãs do horror totalmente extasiados. Parafraseando Gaiman: "Gosto de pensar nesta história como um vírus. Uma vez que a tiver lido, você nunca mais conseguirá ler o conto original da mesma forma de novo." E é a mais pura verdade.

De fato, a citação acima pode ser extrapolada para tudo que você, leitor, vai ler após conhecer Neil Gaiman: seus critérios vão subir nas alturas, e é provável que você fique mais exigente. Mas tudo bem. Para sua (nossa) sorte, tem muita coisa dele para ser lida ainda.

Abraços, boa leitura!


*Medo de palhaços.

5 comentários:

  1. Vá sem medo nesse, Riesemberg. Certeza que você vai adorar ;)

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  2. Esse livro é excelente, já li duas vezes e sempre olho para ele com vontade de ler de novo.

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  3. Não só esse mais todos os livro do Sir. Gaiman são simplesmente fantásticos!!!
    Ele é realmente um gênio.
    Agora, só para terminar apenas 3 palavras...Neve, Vidro, Maçãs!!!!

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  4. Nossa! Depois de ler isso estou ainda mais tentada a sair por aí catando todas obras do Neil Gaiman para ler, rsrs.
    Depois de terminar Sandman, passaremos ao Fumaça e Espelhos então!

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